Na vida existem muitos dias iguais, repetidos, ou que ao menos parecem ser assim na memória. Sabemos que os vivemos, mas nada em especial nos faz voltar a eles. Há dias, por outro lado, que parecem preenchidos de grande importância e em algum nível nos impactam, de modo que estamos sempre os revisitando, em busca de uma imagem, uma sensação. 201f3v
Quando penso nos anos que vivi na minha graduação, o dia em que assisti Davi Boaventura falar sobre seu livro “Mônica Vai Jantar” foi um desses dias que impactam. Não me lembro ao certo o ano, 2018, 2019. Em um auditório com poucas pessoas, Davi falou de si, da sua jornada como escritor, a pós-graduação em Escrita Criativa e a produção da dissertação, a qual deu origem ao livro e que pode ser ada aqui. Não à toa, de lá para cá, voltei muito à dissertação de Davi, ao “Mônica Vai Jantar”, e agora, quando comecei, e com este texto encerro, ao menos por ora, este projeto de resenhar obras de autores baianos, de novo.
O livro mesmo só consegui ler alguns meses depois do dia no auditório. Despretensiosamente, no Cinema Glauber Rocha, enquanto esperava o horário do filme e olhava as lombadas dos livros na livraria que há no térreo do prédio, vi gritar a lombada vermelha de “Mônica Vai Jantar”. Eu sabia que deveria enfim ler o livro que tanto tinha me interessado.
Mônica precisa ir a um jantar de trabalho para o qual não quer ir. Assim começa a narrativa: uma personagem atrasada se arrumando para um compromisso. Há um agravante, no entanto. Mônica acaba de descobrir que seu marido/namorado, com quem divide apartamento, foi espancado na rua por ter sido pego em ato obsceno dentro de um transporte público. Como ar os pensamentos de uma pessoa em tais circunstâncias? Davi tenta, e acredito que consegue, ao menos até onde isso é possível.
“lá está ela descendo pela escada sem saber como afastar de si a certeza de que qualquer pessoa em sua frente vai poder descobrir o acontecido através de um anúncio luminoso neste seu rosto que maquiado pela metade deve estar já um caos até porque sua própria pálpebra começa a latejar com a dúvida de não saber aonde ir”
A escrita de “Mônica Vai Jantar” talvez assuste a maioria dos leitores. Sem vírgulas e pontos finais ou de segmento, os pensamentos caóticos de Mônica, como são e podem ser os nossos, são a própria narrativa, e pode parecer confuso e até complicado demais ler uma história nesses termos, mas uma vez que a imersão acontece, está feito, a espiral está formada, e só será possível sair mesmo no fim, quando Mônica estiver parada na cozinha, depois de ter ou não ido ao jantar.
Esse efeito de confusão e complexidade é, afinal, fundamental. O campo do mental é assim, e imagino que seria mesmo essa sensação se de repente fosse possível nos sintonizarmos aos pensamentos de uma pessoa e então ouvir tudo o que se a lá dentro. Acho que se trata de um livro importante para quem talvez queira se lembrar do que é capaz a literatura.
“Mônica Vai Jantar” pode ser adquirido no site da editora Dublinense, e também na Amazon. Outra forma de acompanhar a escrita do autor é através da sua Newsletter, que também gosto muito de ler.
Esta é a quarta e última resenha de uma breve série sobre livros de autores baianos que foram publicadas semanalmente, às sextas. A intenção é instigar o leitor a conhecer e incentivar o trabalho desses autores, seja através da obra resenhada ou de outras publicações.
Leia aqui a primeira resenha da série, sobre o livro “Caixa de Domingos”, de Léa Rios.
Leia aqui a segunda resenha da série, sobre o livro “Motel Mustang”, de Marcus Vinícius Rodrigues.
Leia aqui a terceira resenha da série, sobre o livro “Desaparecer”, de Paulo Zan.
Ayla Cedraz é graduada em Letras Vernáculas com Inglês pela Ufba e mestranda em Literatura e Cultura pela mesma universidade.
*Este espaço é plural e tem o objetivo de garantir a difusão de ideias e pensamentos. Os artigos publicados neste ambiente buscam fomentar a liberdade de expressão e livre manifestação do autor(a), no entanto, não necessariamente representam a opinião do Destaque1.